Confronto no Oriente Médio: potencial para abrir velhas feridas e causar centenas de mortes
Em 2021, Israel emergiu como o mais bem-sucedido país na vacinação contra a Covid-19. Quase a totalidade de sua população adulta recebeu as duas doses da Pfizer/Biontech ou da Moderna. Aos poucos, a vida foi voltando relativamente ao normal. Restaurantes lotados. Cinemas com filas. Concertos musicais. Jogos de futebol com torcida. Praias cheias. E UTIs vazias. Moradores de grandes capitais espalhadas pelo mundo olhavam com inveja e admiração para os que estavam em Tel Aviv. Pela primeira vez, partidos árabes-israelenses negociavam genuinamente a participação em uma coalizão de governo em Israel.
No lado palestino, o cenário era mais de resignação. A ocupação israelense na Cisjordânia continuava sem causar grandes protestos no mundo, assim como o bloqueio à Faixa de Gaza. A comunidade internacional, mais preocupada com a pandemia, o aquecimento global e guerras, como a da Síria, parecia ter esquecido a causa palestina. Para completar, os palestinos estavam sendo isolados até mesmo dentro do mundo árabe, com países como os Emirados Árabes e o Marrocos assinando acordo de estabelecimento de relações com Israel.
Mas o mês de maio chegou e, de repente, Jerusalém entrou em ebulição e eclodiu mais uma guerra entre Israel e o Hamas na Faixa de Gaza, a quarta em 12 anos. Em poucos dias, cerca de 60 palestinos e menos de dez israelenses morreram — números que podem se multiplicar caso um cessar-fogo não seja alcançado. Na segunda semana de maio, foguetes do Hamas eram lançados quase ininterruptamente contra o território israelense. Israel bombardeava a Faixa de Gaza. Para complicar, levantes de árabes-israelenses em cidades como Lod acirram ainda mais a crise.
“AO DECIDIR ATACAR ISRAEL COM FOGUETES, O HAMAS TIROU O FOCO DA QUESTÃO DO DESPEJO DE ÁRABES EM JERUSALÉM, NA QUAL OS PALESTINOS DESFRUTAVAM DE MAIS SIMPATIA NA COMUNIDADE INTERNACIONAL”
Essa guinada começou de forma abrupta em Jerusalém. Uma série de acontecimentos coincidiu nesta primeira quinzena de maio, acirrando os ânimos e transformando a cidade em campo de batalha: a noite mais importante do calendário islâmico, uma decisão da Justiça de Israel sobre o despejo de famílias palestinas de suas casas na parte oriental da metrópole sagrada para três religiões, a marcha de Jerusalém de grupos de extrema-direita israelenses, o fim do Ramadã e a aproximação do que os palestinos chamam de Nakba, ou catástrofe, marcando a data da criação de Israel.
Como sempre no caso dos conflitos no Oriente Médio, é preciso conhecer um pouco da história para entender o presente. Jerusalém foi dividida ao meio em 1948, na guerra de independência de Israel. O lado ocidental ficou com os israelenses. Já o oriental, incluindo a Cidade Velha, onde estão o Muro das Lamentações, a Esplanada das Mesquitas e a Igreja do Santo Sepulcro, passou para as mãos da Jordânia. Os moradores árabes cristãos e muçulmanos residentes na parte ocidental tiveram de deixar suas casas e ir para a parte oriental. O inverso ocorreu com os judeus que viviam no lado oriental e migraram para o ocidental.
As casas ou terrenos que pertenciam a judeus no lado oriental acabaram sendo ocupados por famílias árabes (palestinas), assim como as casas de palestinos no lado ocidental foram ocupadas por famílias judias. Esse cenário persistiu até 1967, quando, na Guerra dos Seis Dias, Israel conquistou a parte oriental de Jerusalém, assim como a Cisjordânia, Faixa de Gaza, Colinas do Golã (Síria) e Península do Sinai, que seria devolvida ao Egito nos acordos de Camp David.
A polícia israelense reprime manifestação contra o despejo de árabes em Jerusalém. Foto: DPA / Picture-Alliance / Getty Images
O momento da unificação de Jerusalém 54 anos atrás foi histórico para os israelenses. Após duas décadas, judeus puderam voltar a rezar no Muro das Lamentações. A cidade, considerada a capital eterna e indivisível do povo judaico, estava finalmente unificada por Israel. Ao mesmo tempo, os palestinos se sentiam mais uma vez derrotados e sob ocupação. Afinal, reivindicavam — e continuam reivindicando — a parte oriental como a capital de um futuro Estado.
Com Jerusalém sob controle israelense, judeus donos de propriedades no lado oriental passaram a ter o direito de tentar reaver suas posses. No caso que ganhou notoriedade nas últimas semanas e serviu de estopim para o atual conflito, grupos de colonos judeus entraram na Justiça de Israel para despejar famílias palestinas. Elas vivem em casas construídas em uma área comprada por fundos judaicos ligados ao movimento sionista ainda durante o Império Otomano no século XIX e, posteriormente, vendidas a colonos judeus, mas habitada desde 1948 por palestinos.
Essas casas se localizam em Sheikh Jarrah, um dos bairros árabes mais importantes de Jerusalém. Fica nos arredores do Portão de Damasco, que dá acesso ao quadrilátero islâmico da Cidade Velha — os outros quadriláteros são o judaico, o cristão e o armênio. As ruas de Sheikh Jarrah estão sempre movimentadas com suas lanchonetes de falafel, lojas e hotéis. Também serve muitas vezes como ponto de partida de ônibus e lotações para a Cisjordânia. Os habitantes são majoritariamente árabes.
O sistema antimísseis israelense abate parte dos foguetes vindos de Gaza. Foto: Amir Cohen / Reuters
Na visão de Israel, a decisão sobre o despejo das famílias em Sheikh Jarrah é uma questão imobiliária envolvendo posse e deve ser decidida na Justiça. Para os palestinos, seria uma iniciativa para levar adiante uma limpeza étnica dos árabes residentes em Jerusalém e deixar o lado oriental mais judaico, inviabilizando a instalação de uma capital palestina nessa parte da cidade no futuro. Acrescentam ainda que Israel permite a judeus israelenses poderem reaver suas propriedades em Jerusalém Oriental, mas impede que palestinos, incluindo os com cidadania israelense, façam o mesmo em Jerusalém Ocidental.
A decisão sobre esse despejo seria na segunda-feira 10 de maio, na Suprema Corte de Israel. Nos dias anteriores, houve uma série de manifestações de palestinos, inclusive durante as orações islâmicas na mesquita de Al Aqsa, que é considerada o terceiro lugar mais sagrado para o islamismo. Houve choques com a polícia israelense, resultando em centenas de palestinos feridos, assim como dezenas de policiais.
Diante do agravamento do cenário e da pressão internacional, a Justiça de Israel adiou a decisão. O problema não seria apenas os palestinos. Caso as famílias não sejam despejadas, deve haver revolta de colonos e da extrema-direita israelense. Esses grupos também entraram em choque com a polícia e com os palestinos. Da mesma forma como radicais palestinos entoam gritos antissemitas, os radicais israelenses, em suas manifestações, gritam “morte aos árabes”. Suas ações serviram para agravar ainda mais a crise.
Mulher palestina procura proteção contra ataque israelense em Gaza. Foto: Mohammed Salem / Reuters
Na mesma segunda-feira 10 de maio, quando seria anunciada a decisão da Suprema Corte sobre o despejo, ocorreria a Marcha de Jerusalém, na qual grupos radicais judaicos pretendiam passar por áreas islâmicas da Cidade Velha até chegarem ao Muro das Lamentações para celebrações. Mais uma vez, no último momento, o trajeto foi alterado para não haver confrontos.
Com Jerusalém prestes a explodir, uma nova frente do conflito se abriu na Faixa de Gaza. O Hamas passou a lançar foguetes contra o território israelense com o argumento de estar defendendo os palestinos de Jerusalém. Os alvos atingidos são aleatórios. Na maior parte das vezes, o escudo antimísseis de Israel consegue abater os lançamentos do grupo palestino, considerado terrorista por uma série de nações. Em algumas, porém, chega a matar civis israelenses. Um deles atingiu uma escola, que estava vazia devido ao cancelamento das aulas por causa do conflito.
Israel reagiu aos foguetes com os bombardeios a Gaza. O Hamas sabia que essa seria a reação israelense. Não é diferente de outros três conflitos na região, ocorridos em 2009, 2012 e 2014. Ainda assim, decidiu provocar. Para completar, tirou o foco da questão do despejo em Jerusalém, na qual os palestinos desfrutavam de mais simpatia na comunidade internacional. Um cenário possível nos próximos dias é a situação se agravar. Uma ação militar por terra por parte de Israel certamente aumentaria as chances de mais mortes.
Na cidade de Lod, conflitos entre árabes-israelenses e judeus deixam rastro de destruição. Foto: Ronen Zvulun / Reuters
Iniciativas para a mediação de um cessar-fogo começaram nos primeiros bombardeios. Os Estados Unidos, naturalmente, seriam o ator mais importante. O presidente americano Joe Biden até deu declarações pedindo para as hostilidades se encerrarem. Seu secretário de Estado, Antony Blinken, por sua vez, disse que Israel possui o direito de se defender. O governo americano também tem sabotado um comunicado do Conselho de Segurança das Nações Unidas pedindo uma trégua.
Egito e Jordânia, por terem acordos de paz com Israel e exercerem influência sobre os palestinos, buscam também convencer os dois lados a encerrarem os confrontos. Desta vez, porém, há novos atores, como os Emirados Árabes Unidos, que assinaram um acordo de estabelecimento de relações com os israelenses no ano passado e não têm interesse em uma guerra entre seus novos amigos e o Hamas neste momento. O presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, fez as declarações mais agressivas contra Israel. Seu envolvimento, porém, ficará apenas na retórica.
O Irã e o Hezbollah simpatizam com o Hamas. Braços do regime iraniano dão suporte logístico ao grupo palestino, apesar de as relações terem se deteriorado nos últimos anos. Ao mesmo tempo, Teerã prioriza as negociações com a administração Biden para o retorno dos Estados Unidos ao acordo nuclear. O grupo xiita libanês, por sua vez, segue adversário de Israel, mas os dois lados sabem que um conflito seria devastador para ambos.
“EMBATES ENTRE CIDADÃOS ISRAELENSES — ÁRABES E JUDEUS — SÃO UMA NOVIDADE INQUIETANTE DO ATUAL CONFLITO. O PREFEITO DE LOD CHAMOU O QUE ACONTECE NA CIDADE DE ‘GUERRA CIVIL’”
No final, haverá um cessar-fogo, como houve nas três guerras anteriores. O status quo seguirá o mesmo, com a diferença de que muitos pais perderão seus filhos, crianças se tornarão órfãs e famílias inteiras morrerão. Gaza mais uma vez ficará destruída. Quando visitei o território em 2009, dias depois do encerramento dos combates, conversei com familiares de vítimas, vi prédios e escolas destruídos, plantações arrasadas e animais mortos nas ruas. Também vi muitas crianças que, passados 12 anos, hoje são jovens adultos. Alguns podem ter ingressado no Hamas e lançado foguetes que mataram israelenses. Outros talvez sejam civis mortos nos bombardeios de Israel.
É possível dividir os palestinos em cinco grupos. O primeiro seria o dos refugiados e seus descendentes, que vivem em países vizinhos a Israel, como Síria, Líbano ou Jordânia. O segundo grupo é o dos que vivem na Cisjordânia, sob ocupação israelense e governados pela Autoridade Palestina, controlada pelo Fatah. O terceiro consiste nos moradores da Faixa de Gaza, controlada pelo Hamas e sob bloqueio aéreo, marítimo e terrestre de Israel — sua única saída seria pela fronteira com o Egito, que muitas vezes fica fechada. São eles os que sofrem com os bombardeios e lança-foguetes. O quarto grupo vive em Jerusalém Oriental, que foi conquistada por Israel em 1967.
O último grupo é o de palestinos com cidadania de Israel. Conhecidos como árabes-israelenses, são os palestinos e seus descendentes que permaneceram no que hoje é Israel após a independência em 1948. Representam 20% da população do país. A maioria segue o islamismo sunita. Há minorias drusa e cristã de diferentes denominações, sendo a maior parte deles grego-ortodoxa. Não são obrigados a servir o Exército, embora uma minoria, especialmente drusa, siga a carreira militar. Vivem em cidades árabes, como Nazaré, ou mistas, como Haifa.
Foto: Ronen Zvulun / Reuters
Nas eleições, costumam votar em partidos árabes, que nunca integram coalizão de governo. Apesar de alguns atingirem sucesso profissional, muitos reclamam que, embora possam votar, seriam muitas vezes colocados em uma situação de cidadãos de segunda classe e se queixam de preconceito. Na última eleição, porém, pela primeira vez um partido árabe de Israel negociou sua entrada em uma coalizão do governo. Parecia que a integração estava se acentuando.
Durante a Intifada e nas guerras anteriores em Gaza, a sociedade árabe-israelense se identificava com o lado palestino, mas evitava se envolver diretamente nos conflitos. Até porque poderiam, como outros israelenses, ser alvos de atentados terroristas ou foguetes do Hamas. Na visão de muitos em Israel, caso houvesse um novo conflito, ninguém imaginaria o envolvimento de seus cidadãos árabes. Isso até os atuais eventos em Jerusalém e Gaza.
Na segunda semana de maio, houve levantes na cidade de Lod, com judeus e árabes — todos cidadãos de Israel — entrando em choque no que o prefeito local classificou como “guerra civil”. Carros e até uma sinagoga foram queimados. Os embates começaram a se expandir para outras cidades árabes ou mistas. Também houve choques entre gangues da extrema-direita e radicais árabes-israelenses. Israel, neste caso, não tem um inimigo claro, como o Hamas em Gaza. Trata-se de israelenses lutando contra israelenses. Em certa medida, esses conflitos lembram episódios sectários da guerra civil do Líbano, do Iraque e da Síria.
Benjamin Netanyahu, dias antes da eclosão dos confrontos em Jerusalém e da guerra na Faixa de Gaza, havia fracassado em sua tentativa de formar uma coalizão de governo de extrema-direita. Em meio a uma série de processos na Justiça, corria o risco de perder o cargo de premiê após 12 anos e terminar na prisão. Após quatro eleições, a oposição, liderada pelo centrista Yair Lapid, passava a ter perspectiva de construir uma aliança governista com partidos de direita e de esquerda com o objetivo de derrubar Bibi, como é conhecido o primeiro-ministro.
Menino com bandeira do Hamas na Faixa de Gaza. Foto: Mohammed Salem / Reuters
No lado palestino, o presidente Mahmoud Abbas segue enfraquecido praticamente desde que assumiu o poder, há mais de 15 anos. Por não realizar eleições que estavam previstas, perdeu a legitimidade. A votação que seria realizada agora em maio acabou cancelada. O líder palestino temia perder espaço para facções dissidentes do Fatah, seu partido. O Hamas, por sua vez, desfruta de uma base de apoio, embora longe de ser majoritária entre os palestinos. Com o conflito, o grupo busca fortalecer sua imagem, ainda que sob os cadáveres de palestinos mortos nos bombardeios.
Não há perspectiva de negociações de paz entre os dois lados mesmo depois do cessar-fogo. A incerteza política em Israel prosseguirá até haver uma verdadeira resolução sobre o destino de Netanyahu. O Hamas não é visto como um ator legítimo pela comunidade internacional por suas atividades terroristas. A Autoridade Palestina perdeu força com Abbas e precisa de renovação. Os Estados Unidos, historicamente mediadores de negociações, priorizam outros temas de política externa, como a China e a Rússia, na administração de Biden, que tem os olhos ainda mais focados nos assuntos domésticos americanos. Novos atores como os Emirados podem até ajudar, mas são insuficientes.
O certo é que o risco de uma nova guerra nos próximos anos entre Israel e Hamas na Faixa de Gaza continuará. Este atual conflito não será o último entre os dois lados. Já os levantes em cidades mistas e árabes de Israel, como Lod e Haifa, devem ser observados com enorme atenção. Não sabemos como podem terminar e qual será seu impacto na sociedade israelense.
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